"Um belo dia entraram numa selva rica de árvores frondosíssimas, com frutos de todas as espécies, através da qual corria um rio de água branca como o leite. e na selva abriam-se clareiras verdejantes, com palmeiras e videiras carregadas de esplêndidos cachos de bagos do tamanho de uma cidra. Numa destas clareiras havia uma aldeia de cabanas simples e robustas, de palha limpa, de que saíram homens completamente nus da cabeça aos pés, e a alguns dos varões era só por acaso que às vezes a barba compridíssima e fluente cobria as partes pudendas. As mulheres não se envergonhavam de mostrar os seios e o ventre, mas dava a impressão de que o faziam de modo assaz casto: olhavam para os recém-chegados atrevidamente nos olhos, mas sem suscitarem pensamentos inconvenientes.
Eles falavam grego e, recebendo com cortesia os visitantes, disseram que eram gimnosofistas, ou seja, criaturas que, em inocente nudez, cultivavam a sapiência e praticavam a benevolência. Os nossos viajantes foram convidados a correrem livremente a sua silvestre aldeia, e à noite convidaram-nos para uma ceia feita apenas de alimentos produzidos pela terra. Baudolino fez algumas perguntas ao mais velho deles, que todos tratavam com particular reverência. Perguntou o que possuíam, e ele respondeu: - Possuímos a terra, as árvores, o sol, a lua e os astros. Quando temos fome comemos os frutos das árvores que, seguindo o sol e a lua, produzem sozinhos. Quando temos sede vamos ao rio e bebemos. Temos uma mulher para cada um seguindo o ciclo lunar cada um fecunda a sua companheira, até parir dois filhos, e damos um ao pai e outro à mâe.
Baudolino espantou-se por nâo ter visto nem um templo nem uum cemitério, e o velho disse: - Este Lugar em que estamos é também o nosso túmulo, e aqui morremos estendendo-nos no sono da morte. A terra gera-nos, a terra nutre-nos, debaixo da terra dormimos o sono eterno. Quanto ao templo, sabemos que os erigem noutros lugares, para honrar o que eles chamam Criador de todas as coisa. Mas nós acreditamos que as coisas por charis, na graça de si próprias, tal como si próprias se mantêm, e a borboleta leva o pólen à flor que, ao crescer, a nutrirá. - Mas pelo que estou a entender vós praticais o amor e o respeito recíproco, não matais animais e muito menos os vossos semelhantes. Em virtude de qual mandamento o fazeis? - Fazemo-lo precisamente para compensar a falta de todos os mandamentos. Só praticando e ensinando o bem podemos consolar os nosso semelhantes da falta de um Pai. - Não se pode passar sem um pai - murmurava o Poeta a Baudolino-, olha como se reduziu a nossa bela armada por morte de Frederico. Estes andam aqui a dar ar ao pardal mas não sabem nada do que é a vida... Borão pelo contrário ficou impressionado com aquela sabedoria, e começou a fazer uma série de perguntas ao ancião. - Quem são mais, os vivos ou os mortos? - Os mortos são mais, mas já não se podem contar. Portanto os que se vêem são mais que os outros que já não se podem ver. - O que é mais forte, a morte ou a vida? - A vida, porque o sol quando nasce tem raios luminosos e resplandecentes e quando se põe está mais fraco. - O que é maior, a terra ou o mar? - A terra, porque até o mar assenta no fundo da terra. - O que surgiu primeiro, a noite ou o dia? - A noite. Tudo o que nasce é formado nas trevas do ventre e só depois dado à luz. - Qual é a parte melhor, a direita ou a esquerda? - A direita. De facto o sol também nasce da direita e percorre a sua órbita no céu para a esquerda, e a mulher aleita primeiro da mama direita. - Qual é o mais feroz dos animais? - Perguntou então o Poeta. - O homem. - Porquê? - Pergunta a ti próprio. Tu também és uma fera que tem consigo outras feras e por ânsia de poder privar da vida todas as outras feras. Disse então o Poeta: - Mas se fossem todos como vós o mar não seria navegado, a terra não seria cultivada, nem nesceriam os grandes reinos que trazem ordem e grandeza à mesquinha desordem das coisas terrenas. Respondeu o ancião: - Cada uma dessas coisas é certamente uma fortuna, mas é construida sobre o infortúneo dos outros, e isto não queremos nós. Abdul perguntou se sabiam onde vivia a mais bela e mais distante de todas as princesas. - Andas à sua procura? - Perguntou o velho, e Abdul respondeu que sim. - Viste-a alguma vez? - E Abdul respondeu que não. - E deseja-la? - E Abdul respondeu que não sabia. Então o velho entrou na sua cabana e tornou a sair com um prato de metal, tão liso e reluzente que todas as coisas em volta se reflectiam nele como uma superfície de águas paradas. Disse: - Recebemos há muito tempo a prenda deste espelho, e não podiamos recusá-lo por cortesia para com o doador. Mas nenhum de nós queria ver-se nele, porque isso poderia induzir-nos à vaidade do nosso corpo, ou ao horror por qualquer defeito, e assim viveríamos no temor de que os outros nos desprezassem. Neste espelho, se calhar, um dia chegarás a ver o que procuras. Enquanto estavam quase a adormecer disse o Boidi, de olhos húmidos: - Fiquemo-nos por aqui. - Bela figura que farias, nu como um verme - rebateu o Poeta. - Talvez queiramos demasiado - disse o Rabi Solomon -, mas agora não podemos evitar querê-lo. Tornaram a partir na manhã seguinte."
Umberto Eco in "Baudolino"
A natureza criou os seres vivos de forma natural, segundo a teoria da evolução das espécies. Logo nós também fizemos parte dessa mesma criação. A natureza é a única que domina o mundo, cria e destrói, não é um deus, é a natureza. Mas agora, agora existe um deus. O Homem, que faz o que quer, destruindo mais que protegendo o que a natureza criou. Como podemos nós respeitar um Deus superior se não respeitamos algo ao qual fazemos parte como a natureza, e como o podemos respeitar se nos consideramos a nós próprios como deuses, será que estou errado? Dúvido.
Quem vencerá esta batalha, o homem ou a natureza? Será o Homem capza de destruir toda a natureza e evitar dessa forma ser destruido por ela. Pareçe que se andam a esforçar nesse capítulo. Mas não seremos nós também destruidos, sem a natureza? Somos totalmente dependentes dela. Seremos também dependentes de algum Deus?
"Houve um tempo em que pertencemos à natureza e a respeitámos como nossa mãe, agora ela pertence-nos, mas já mais nos respeitará."
Photographer: Sarah Leen, in Malheur, Oregon, USA
1 Comments:
This comment has been removed by a blog administrator.
Post a Comment
<< Home